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A cobertura seletiva: como o Grupo Globo tentou moldar nossa visão sobre a geopolítica palestina

por Francisco Fernandes Ladeira

No dia 7 de outubro de 2023, o mundo voltou sua atenção para a contraofensiva do Hamas e outros grupos da resistência palestina ao sul de Israel. A operação foi imediatamente classificada pela grande mídia brasileira como um “ataque terrorista surpresa”. No entanto, essa narrativa simplista ignora décadas da principal ocupação colonial de nosso tempo. Além disso, a reação israelense, amplamente respaldada por potências ocidentais e pelos principais conglomerados de mídia do planeta, foi imediata e desproporcional. Apenas no primeiro mês, mais de dez mil palestinos morreram em Gaza, sob bombardeios que atingiram hospitais, escolas e áreas civis, com bloqueio de água, comida e remédios – uma clara violação do direito internacional, caracterizada como punição coletiva.

A cobertura do Grupo Globo seguiu a cartilha hegemônica: Israel como vítima, Hamas como terrorista, Palestina como agressora. Essa abordagem não é neutra, tampouco objetiva, conforme apregoam os manuais de redação da empresa da família Marinho. Ela omite que os antagonismos entre israelenses e palestinos remontam ao século XIX, com o movimento sionista buscando estabelecer um Estado judeu em território já habitado por árabes palestinos. Omite que a criação de Israel em 1948 resultou na expulsão de 780 mil palestinos – a Al Nakba (tragédia). Omite que, desde 1967, Israel ocupa militarmente toda a Palestina histórica, controlando mobilidade, economia e direitos básicos dos palestinos, sendo Gaza, em especial, uma espécie de prisão a céu aberto. Nada entra nem sai de lá sem autorização do governo de Tel Aviv.

Uma breve análise do discurso revela como a manipulação do Grupo Globo opera. O termo “terrorista” é aplicado seletivamente: quando o Hamas mata civis, é terrorismo; quando Israel mata muito mais civis, é “legítima defesa”. Nas coberturas dos noticiários internacionais, as vítimas israelenses são humanizadas: nomes, rostos, histórias. As palestinas são estatísticas, ou pior, “danos colaterais” de uma “guerra” apresentada como simétrica, quando na realidade um dos lados possui um dos exércitos mais modernos do mundo e outro vive sob ocupação militar e colonial. Nos programas da GloboNews, especialistas convidados repetem os mesmos chavões dos articulistas da casa, como Demétrio Magnoli e Jorge Pontual, que não se furtam, inclusive, em divulgar fake news, como o caso dos supostos quarenta bebês degolados pelo Hamas.

A linguagem é cuidadosamente escolhida: “reação israelense”, não “ataque”; “conflito”, não “genocídio” ou “limpeza étnica”. Imagens de Gaza mostram escombros; as de Israel, sofrimento humano. A expressão “comunidade internacional”, na prática, é um eufemismo para os interesses dos Estados Unidos e Europa.

Essa construção não é por acaso. Ela serve a um projeto geopolítico que normaliza a violência do forte e criminaliza a resistência do fraco. É a mesma lógica colonial que justificou a expansão europeia no século XIX: os palestinos devem ser expulsos de suas terras. Para tanto, todos os meios possíveis devem ser utilizados.

Mas a narrativa hegemónica encontrou resistência. Redes sociais e imprensa alternativa permitiram que imagens de Gaza chegassem ao mundo, mostrando a real dimensão do genocídio. Pela primeira vez, a chamada “opinião pública global” começou a questionar a versão oficial sobre as relações entre Israel e Palestina. O próprio Grupo Globo, pressionado, precisou modificar seu discurso. Atribuiu a violência a Netanyahu, não a Israel – uma manobra para personalizar o problema e escapar da crítica estrutural. Ou seja, nessa lógica, a destruição na Faixa de Gaza seria um “projeto de governo”, e não o que realmente é: uma “política de Estado”.

Portanto, a conclusão é clara: entender a geopolítica palestina exige desconfiar das manchetes. Exige buscar fontes diversas, contextualizar historicamente e questionar por que algumas “vidas valem mais notícia do que outras”. A verdadeira imparcialidade está em reconhecer que não há equivalência entre o opressor e o oprimido, entre a potência ocupante e o povo sitiado. Ignorar isso é compactuar com uma narrativa que há décadas justifica a morte em nome de interesses coloniais.

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Francisco Fernandes Ladeira é professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor do livro “A ideologia dos noticiários internacionais – volume 2” (Emó Editora)

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Fonte: https://jornalggn.com.br/opiniao/como-o-grupo-globo-tentou-moldar-nossa-visao-sobre-geopolitica-palestina-por-francisco-ladeira/